O início da fala 

A linguagem dos animais e dos ancestrais do homem tratava sobre fatos reais e não envolviam a transmissão de conceitos.

No princípio, a linguagem dos humanos era semelhante a de outros animais, gritos e grunhidos para avisar sobre um perigo, sobre alguma fonte de alimento, para reunir o bando, etc. 

Pela própria natureza do som, a palavra não deixou registros históricos. O que sabemos sobre nossos ancestrais mais distantes provém de seus ossos fossilizados e de suas ferramentas de pedra. Não sabemos como a fala evoluiu, o máximo que podemos fazer são suposições.

Por isso não sabemos ao certo quando surgiu a palavra como a conhecemos hoje, que é ligada ao pensamento abstrato, nem mesmo se é uma conquista do Homo Sapiens ou de um de nossos ancestrais como o Homo Erectus, muitos estudiosos supõem que nossos ancestrais já possuíam um tipo primitivo de linguagem falada.

Mas o fato é que a fala humana atual necessita de complexos processos mentais. Houve a necessidade de um cérebro maior e de mudanças anatômicas no aparelho fonador. Mais inteligência e mais “hardware”.

História Humana - o início da fala

Um papagaio, por exemplo, tem um aparelho fonador que permite emitir sons semelhantes ao homem mas ele não se comunica como nós, não transmite ideias com sua fala, apenas repete o que aprendeu "a duras penas" (desculpem pelo trocadilho).

Os chimpanzés, por outro lado, tem um cérebro com poder suficientemente para se comunicar através de gestos e da linguagem de sinais utilizadas por surdo-mudos, não como os humanos mas o suficiente para uma comunicação básica. Mas não conseguem falar pois seu aparelho fonador não é apropriado para isso.

Ao papagaio falta um cérebro mais desenvolvido e ao chimpanzé um aparelho fonador mais adequado. 

A fala como a conhecemos hoje precisa de um cérebro poderoso e do aparelho fonador adequado. 

História Humana - o início da fala

Homo habilis: à esquerda reconstrução do crânio com ossos fossilizados de cerca de 2,0 milhões de anos, as partes escuras são as partes que faltam. À direita uma simulação de como seria o rosto do home habilis - claro que se trata apenas de uma suposição.

Homo habilis (homem hábil)

Na evolução do ser humano, posição ereta liberou o uso das mãos para manusear objetos e fabricar ferramentas. Isso contribuiu para o aumento da capacidade de nosso cérebro. O fabrico de ferramentas, mesmo que primitivas, necessita de uma capacidade mental mais refinada: o processo de sequência mental. 

O processo de sequência mental é a criação de uma sequencia de eventos numa determinada ordem dentro de uma determinada lógica para se obter um resultado. Para nós, Homo Sapiens, isso é muito natural, fazemos isso o tempo todo. Mas nem sempre foi assim, isso foi uma conquista do Homo habilis.

Processos, como o de fabrico de ferramentas de pedra, exigem imaginação, capacidades de abstração, previsão e pensamento abstrato. 

Pense bem, só tínhamos nossas mãos. De repente alguém encontra um pedaço de pedra afiada produzida naturalmente e chega a conclusão: esse pedaço de pedra pode ser útil para cortar as coisas e vez de rasgá-las com as mãos ou com os dentes. Nem Einstein foi tão inteligente. 

O problema era que com o tempo essa ferramenta natural perdia o corte. Passado algum tempo, outro cara inteligente descobre como afiar essa essa ferramenta. Passado ainda mais tempo (estamos falando de milhares de anos) um outro gênio da humanidade descobre como fazer essa ferramenta.

Essas primeiras ferramentas surgiram cerca de 2,5 milhões de anos atrás com o Homo habilis. 

Foi o início da tecnologia humana que nos levou nos à construção de computadores, chegarmos à lua e enviar sondas espaciais a todo o sistema solar.

Comer carne é bom!

Existe a teoria que a introdução da carne na alimentação humana potencializou o desenvolvimento do cérebro. Ao que parece, havia uma propensão genética ao desenvolvimento de cérebros maiores mas que não podia ser expressa por conta de uma alimentação pobre em proteínas.

Além disso, a alimentação com carne é mais eficiente sobrando mais tempo para outras atividades. Menos tempo mastigando mais tempo falando.

Paralelamente, e não se sabe ao certo o porquê, o aparelho fonador humano também evoluiu permitindo a emissão de sons mais complexos. Alguns dizem que foi justamente a posição ereta que possibilitou essa evolução.

Mais cérebro, aparelho fonador apropriado mais uma intensa atividade social deram ao ser humano as condições para o desenvolvimento de uma linguagem verbal (fala) mais complexa.

Vida em grupo + cérebro poderoso + aparelho fonador adequado = fala

História Humana - o início da fala

Homo erectus: à direita reconstrução do crânio. O homo erectus viveu de cerca cerca de 1,8 milhões de anos a 300 mil anos atrás. À esquerda uma simulação de como seria o rosto do home erectus - apenas de uma suposição.
O erectus tinha um cérebro 50% maior que o do habilis.

Homo Erectus (Homem Ereto)

Os chimpanzés, gorilas e outros macacos do gênero homo, semelhantes a nós, também utilizam as mãos para manipular objetos e tem vida social, mas não trilharam o mesmo caminho evolutivo dos humanos.

Por que essa diferença?

O homem, mesmo o habilis e o erectus, é um animal sem muitos recursos físicos para enfrentar predadores. Os macacos e outros animais tem bastante agilidade para escapar e não se tornarem refeição. Depois de ter descido das árvores e ficar em pé, o homem se tornou uma presa fácil. Desenvolver outras habilidades foi a saída para a sobrevivência.

Talves os outros macacos não evoluíram na mesma direção dos humanos pelo simples fato de que eles já estavam suficientemente adaptados para a sobrevivência. Pode ser que a natureza não mexa "em time que está ganhando". Tubarões e crocodilos, por exemplo, tem o mesmo design a milhões de anos.

Vamos pensar assim: um bom profissional, por exemplo um médico de renome e que ganha um bom salário. Não fará muita diferença se esse médico aprender a fazer pão. Mas, para que está desempregado, aprender a fazer pão pode ser uma saída. 

Ou seja, os outros primatas já estavam se dando bem, não faria muita diferença um macaco ser mais habilidoso que a média.

História Humana - o início da fala

Grande parte dos cientistas acredita que tanto o Homo habilis como e principalmente o Homo erectus já tinham algum tipo de vocalização rudimentar.

O arqueamento da base do crânio do homem moderno começou a cerca de 2 milhões de anos. Esse arqueamento é essencial para a fala.

Nossa laringe é mais longa e baixa que a dos primatas o que permite maior variação sonora. Interessante notar que os bebês até os dois anos de idade possuem uma laringe alta. Quando ela desce os pequenos começa a falar. A posição ainda mais baixa ocorre por volta dos 14 anos de idade quando passamos a ter uma voz mais adulta.

Essa posição mais baixa da laringe permitiu o desenvolvimento do hióide, um pequeno osso com a  forma da letra U que segura e permite a articulação da língua. Esse osso foi descoberto nos Neandertais a cerca de 60.000 anos.

História Humana - o início da fala

Crânio de um Neandertal à esquerda e à direita do Homo Sapiens (nós). O cérebro do Neandertal era maior que o nosso. O Neandertal viveu na Europa até cerca de 40.000 anos. Convivemos com os Neandertais durante um bom tempo.

A fala e o gesto

Como dissemos, no principio a fala se limitava a gritos e grunhidos e nem havia um aparelho fonador adequado para um discurso mais complexo. Um recurso bastante utilizado eram o gestos. "Conversar" nos tempos primitivos devia ser quase um teatro, se contava uma caçada representando a caçada.

Por isso, mesmo hoje em dia, gesticulamos tanto ao falar. A fala e o gesto estão intimamente ligados. E não se trata apenas dos gestos de braços e mãos, mas as expressões do rosto e posturas do corpo. Tudo está interligado

História Humana - o início da fala

A importância da fala

Sem dúvida, a linguagem falada como a que conhecemos hoje foi um grande salto na evolução humana.

Foi um processo gradual mas não é possível saber quanto tempo levou.

A comunicação entre humanos existia e já era mais avançada que a dos outros animais. Certamente já usávamos a mímica e danças descrever algo que havia acontecido mas não era uma comunicação eficiente que permitisse um grande salto evolutivo.

Por exemplo, para uma mãe transmitir ao filho que uma hiena era um animal perigoso era preciso que a hiena aparecesse. Então todos os que já sabiam que a hiena era perigosa fugiam e quem não sabia também fugia por imitação aprendendo sobre um novo tipo de perigo. 

Uma criança seria uma presa fácil se estivesse afastada do grupo e não soubesse o perigo que a hiena representava.

A fala permite passar o conhecimento de um perigo antes da situação acontecer. Assim, a fala poupa vidas e permite o aumento do bando.

A fala facilita a comunicação e a transmissão do conhecimento e consequentemente a preservação desse conhecimento através das gerações.

Além da transmissão de conhecimento, a fala potencializou o relacionamento entre os indivíduos do grupo, permitindo que cada um expresse seu estado de espírito, emoções, desejos e receios de maneira muito melhor que através de gritos, grunhidos e mímica.

A fala também permitiu uma maior organização do grupo e divisão das tarefas do dia a dia Com isso, as informações pertencentes ao grupo se difundiam, aumentando enormemente o conhecimento do grupo, multiplicando as possibilidades de sobrevivência.

A fala, para o homem primitivo, foi uma revolução maior que a internet para os dias de hoje. Talvez a maior conquista da humanidade.

Posteriormente, a escrita potencializou ainda mais essa progressão do conhecimento.

A fala e nosso pensamento

Hoje em dia, a fala é tão comum que nem pensamos nela, é um processo tão automático como andar. Repare que os bebês aprendem a andar e a falar praticamente sozinhos.

A fala permitiu uma revolução mental inimaginável, por isso a considero como nossa maior conquista.

Quando pensamos fazemos uso da linguagem falada, aquela voz na nossa cabeça, para organizar nossas ideias, nosso raciocínio. Agora mesmo, quando você lê este texto, você diz as palavras do texto em sua cabeça. Pode parecer óbvio mas houve um tempo em que não era assim.

A fala implica em pensamento abstrato.

Antes da fala havia apenas o pensamento concreto que é o pensamento a partir da percepção:  de nossa visão, audição, tato, olfato e paladar. É sobre a percepção de objetos reais. É imediato, intuitivo, deste momento.

O pensamento abstrato é sobre coisas que não estão presentes aqui e agora. É o pensamento sobre conceitos. São pensamentos duradouros.


História Humana - o início da fala

Sim, o que vemos acima não é uma bola de futebol, é apenas uma imagem de uma bola de futebol.

Não precisamos ver ou pegar uma bola de futebol mas podemos pensar sobre ela. Podemos explicar o que é uma bola de futebol para uma pessoa que nunca viu uma e depois mostrar para ela vários objetos, dentre eles uma bola de futebol, se explicamos direitinho essa pessoa que nunca viu uma bola de futebol conseguirá reconhece-la.

A palavra bola não é a bola propriamente dita. Mas ao falarmos “bola” ou ao desenharmos uma, ou mesmo reproduzindo seu formato com as mãos nos referimos a um objeto real, fazemos a conexão de um conceito abstrato (a palavra bola) com o objeto real bola.

Quer outro exemplo: a cor branca e a cor preta  são ideias abstratas. Você não pega o branco, você não vê o preto (como assim?). Mas você pega uma bola de futebol branca e preta, e vê a bola de futebol branca e preta.

É o pensamento abstrato que permite a noção de símbolo, ou seja, atribuir a algo um significado específico.

Atribuímos à palavra "bola" um significado. Refinamos esse significado quando dizemos "bola de futebol". Refinamos ainda mais quando dizemos "bola de futebol branca e preta"

Parece conversa de maluco pois isso para nós é como respirar. Não diria que é mais velho que andar para frente mas que é quase tão velho como andar em pé.

Mas temos pensamentos ainda mais abstrato que isso

Bola é uma ideia abstrata de um objeto real. Temos conceitos inatingíveis como as cores, como foi dito, não pegamos as cores, apenas as as percebemos na luz que os objetos refletem.

O pensamento concreto diz que a bola existe. O pensamento abstrato diz o que é uma bola

Mas e a alegria, o medo, o amor, a abundância, chegar, partir, liberdade, confusão? 

Esses não são conceitos abstratos de objetos concretos, mas conceitos de ideias, de sensações, de sentimentos.

Podemos expressar muitas dessas ideias através da mímica, a alegria seria fácil. 

Mas sem a fala e sem esse "software" que é o pensamento abstrato, será muito difícil expressar a ideia de liberdade ou de abundância.


História Humana - o início da fala


A linguagem falada juntamente com o pensamento abstrato nos liberta dos atos reflexos, próprio dos animais, para atos voluntários, desencadeados pela nossa consciência.

Para explicar o ato reflexo, que envolve o pensamento concreto (quase esqueci dele) imagine o seguinte:

Um time de futebol e seu técnico estão reunidos no vestiário antes do início da partida. Esse é o momento que o técnico motiva o time e repassa a tática que utilizarão para enfrentar o time adversário. Esse momento é baseado quase que inteiramente em linguagem abstrata. Eventualmente o técnico pode usar um movimento corporal para enfatizar uma ideia "vamos jogar duro" dando com o ombro no jogador ao lado, mas estamos no campo do abstrato.

O jogo começa e o time adversário faz uma boa jogada e dá um chute em direção ao gol. Nesse momento o goleiro apenas salta em direção à bola e a agarra. A torcida vai ao delírio! Esse é o ato reflexo, o pensamento concreto, pura percepção e ação. Grandes jogadas, que fazem a glória de diversos atletas, sã fruto em grande parte de atos reflexos.

A fala e o pensamento abstrato permitem ao homem desenvolver o sentido da previsão, possibilitando imaginar e planejar suas ações antevendo as consequências de suas ações a fim de obter resultados no futuro. É isso que o técnico desse time de futebol fez.

Não usar essa dádiva que a evolução nos deu: o poder de imaginar, planejar e antever as consequências de nossas ações e agir apenas por impulso é jogar fora a evolução de milênios e voltar um passado em que ainda éramos próximos aos animais.

Você estuda e trabalha hoje para ter um futuro garantido e seguro. Os animais, em geral, estão preocupados em escapar dos predadores e obter sua próxima refeição.

É a linguagem que nos torna humanos, é a nossa liberdade, nossa inteligência e raciocínio, nossa criatividade.  

Muitos querem nos dizer o que pensar mas a liberdade de pensamento é um dos direitos mais fundamentais. A lei é feita para os atos, não para os pensamentos.

A fala é muito, mas muito anterior à escrita.

Ao final do dia, em volta da fogueira, nossos antepassados contavam e encenavam suas histórias. Muitas dessas histórias se tornaram lendas e mitos. Muito mais adiante, com a invenção da escrita, essas histórias seriam a inspiração para as primeiras obras da literatura.

Nossa mente, nosso pensamento, nossos desejos e medos tem origem nessa época primitiva. Até hoje carregamos os sentimento desses ancestrais reunidos à volta do fogo. Com o avanço da história evoluimos, novos sentimentos e desejos serão acrescentados ao nosso pensamento até chegarmos ao que somos hoje.